Sou como pólen. Agora sei. Cada gargalhada, assinatura, beijo e constatação – sem começo, meio ou fim -, que me espalha, desconstruindo aquilo que sou.

Desde o momento em que seus olhos não me olharam mais, fui cruelmente inundada por um dezembro fluído; sempre é temporal, todavia e, contudo, na minha felicidade existe um resto de melancolia, talvez desprendida das vistas, despedida dos outros.

Sei que a doença começou a fazer parte de nós quando nossa casa foi dividida em duas, depois nosso quarto e por fim, tudo dentro de nós. No chão, fita crepe, naquilo que é teu, somente minha sombra pode entrar. Todos os móveis milimetricamente divididos, todos os adornos, plantas e livros. E falando nisso, como se rega uma planta pela metade? Continuo cuidando de você.

Por dentro sinto que existe uma sensação diferente de tudo que conhecemos, uma coisa que já está impregnada nas paredes e escorre pela torneira fechada, no entanto, é difícil precisar. Nos levantamos, sentamos, ainda pensamos com amor, um no outro. Lamentamos, nos lavamos, nos conhecemos e as palavras sempre minúsculas, ásperas, duras saindo pela boca, apesar da bandeira de paz, hasteada entre nós.

A cama sempre desfeita. A luz sempre acesa, e às vezes quero dizer sim, outras vezes, não quero dizer absolutamente nada. Você, paralisado dentro de um turbilhão, no mesmo lugar, no mesmo sofá, nas mesmas circunstâncias de anos atrás; continua lindo, de banho tomado, de barba mal feita, de olhos azuis cor de mar e medos tão singelos… É nessa hora que meu coração aperta: uma angústia tão sem motivo. Me viro na cama, indo na sua direção, quebro as regras impostas tão suavemente e ouço sua respiração, sei que sinto sua presença como sentia antes, tão violentamente.

Mentiras deslavadas, uma enxurrada silenciosa de acusações, sempre as mesmas. No café da manhã, noto mesa para dois, tudo que gosto você já cozinhou, dia após dia, café puro, torradas, bolo de laranja, mamão papaia. Tomo café, somente café e diante de  disto, todos os cuidados se tornam guerras violentíssimas, que, como nossa fluidez, se espalha. Você me olha, me infiltra e num rasgão, pergunta se não vou comer mais, se esse buraco que existe em você também já tomou conta de mim. Chega mais perto, ultrapassa nossa regra e me revira inteira quando continua perguntando, pergunta mais, pergunta se tenho medo. Saio depressa, me perco pela casa, coloco calças por cima do short, me trancafio do lado de fora, longe de você, de tudo que há em você. Perco as chaves.

Desde aquele café da manhã inesperado, uma sensação me circula inteira, desde o corpo até os órgãos, os ossos, a memória, a boca. Tento olhar nos seus olhos enquanto sinto que você me olha, transpassar essa loucura vigente  em que nós dois nos transformamos. Recontornar as águas, os erros, comandar novamente o fluxo e perceber, noite após noite, como ontem, que apesar da intensidade do sono, meu sonho continua velado e beijado.

(continua…)